segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Freud e a decisão de desafiar a moral de uma época



Quem olhar para a fotografia de Sigmund Freud vê uma figura sóbria, sombria até, impecavelmente vestida no seu fato de casaco, colote e gravata, qual empresário profissional do virar do século. Não há indícios de se tratar de um homem revolucionário e subversivo que não respeitasse os valores burgueses associados à prosperidade.
Freud nasceu na Morávia em 1856, cresceu na sofisticação cosmopolita de Viena, para onde a sua família se mudou em 1860.  Os seus primeiros anos de estudante despertaram-no para o mundo e para as correntes intelectuais. Depois de assistir à leitura pública de um ensaio sobre a natureza escrito pelo poeta e filósofo alemão da época do romantismo, Goethe, decidiu repentinamente que medicina seria o trabalho da sua vida, matriculando-se na Universidade de Viena. Estudante brilhante, entrou para o Hospital Geral de Viena como assistente clínico de um psiquiatra famoso. Até então, a formação de Freud centrava-se na natureza física do cérebro e do sistema nervoso, no entanto, passou nove semanas com Charcot, um neuropatologista. Este trabalhava com doentes com perturbações que eram classificadas como «histeria» e demonstrava que sintomas de histeria claramente físicos – tais como a paralisia ou a cegueira – tinham a sua origem não num qualquer defeito físico do cérebro ou dos nervos mas sim na mente. Através da hipnose Charcot influenciava e alterava as ligações entre a mente e os sintomas físicos dos seus pacientes.
Freud, o jovem médico, viu no trabalho de Charcot a possibilidade de aliviar o sofrimento de doentes psiquiátricos considerados incuráveis, tendo visto também algo mais profundo. Milhares de anos de civilização ocidental baseavam-se em duas convicções: a de que mente e corpo não eram completamente separados e a de que as pessoas exerciam um alto grau de controlo sobre os seus destinos, através da mente, sob a forma de vontade consciente. Freud decidiu seguir estas conclusões até onde elas o levassem.
Tendo regressado a Viena, fez uma parceria com outro médico, Joseph Breuer, com o qual debateu o caso de uma doente que sofria de uma variedade de sintomas histéricos debilitantes. Juntos enconrajaram-na a falar livremente acerca dos seus sintomas, a deixar a mente vaguear, como se a verbalização provocasse uma catarse. Freud compreendeu que esta catarse era o resultado de trazer ao nível da consciência sentimentos até então inconscientes. O seu trabalho com Breuer sugeria-lhe que este reino inconsciente, que podia causar caos no corpo sob a forma de sintomas histéricos, não era afinal totalmente inacessível à consciência. Podia ser alcançado.
Em Viena, à semelhança do que acontecia em muitas outras cidades de finais do século XIX, imperava uma atitude moral frequentemente designada a partir do nome da rainha Vitória, de Inglaterra. A sociedade vitoriana exagerava os precinceitos da civilização ocidental: a crença na separação absoluta entre mente e corpo e a certeza de que uma pessoa podia fazer aquilo que realmente quisesse. Não foi de ânimo leve que Freud decidiu violar este tabu e correr este imenso risco social e profissional, em prol de uma compreensão profunda de que o esforço que uma sociedade faz para resistir a uma ideia é precisamente a medida última da verdade e força dessa mesma ideia.
Ricardo Pereira

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