domingo, 3 de abril de 2011

Justiça, Primogénita da Democracia


O nosso modelo social está ultrapassado. A complexidade das interacções estabelecidas numa sociedade, a hierarquização… tudo é propício ao inconformismo, à relutância perante a injustiça, a demagogia e a repressão disfarçada de uma aparente liberdade.
A Democracia Representativa jamais representa o espírito da liberdade e da livre iniciativa, uma vez que não raras vezes são descurados os interesses da sociedade em geral. A aplicação de valores, princípios e ferramentas de uma Democracia Participativa urge um pouco por todo o mundo, uma vez que o nosso regime Democrático Representativo está corrompido por aqueles que auferindo de um “estatuto social avantajado”, de modo coercivo subordinaram a Justiça à Democracia.
No texto seguinte, para além expor a minha visão do nosso modelo social, procuro explicar a razão pela qual acredito que o nosso sistema de livre iniciativa fracassou na nossa época: esse sistema ainda não foi aplicado!
Para expor algumas das minhas ideias escrevi a crónica que se segue. Afinal, qual a actual relação entre Democracia e Justiça? Como explicar o aparecimento da injustiça no seio social? (…)


 “Poucas descobertas são mais irritantes do que as que revelam a origem das ideias.”
 “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente."

Lord Acton



Ignoto é um velho companheiro de diálogo. Por isso mesmo, encontramo-nos frequentemente para pôr a conversa em dia e deambular sobre assuntos do trâmite social mais contundentes e fracturantes. Numa última conversa, Ignoto relatou um episódio insólito ocorrido entre a Democracia e a Justiça.
A Justiça é primogénita da Democracia, aliás, durante anos, sua essência e amparo. Contudo, com novos tempos de faustosas modernidades, a aliança de sangue entre irmãs é francamente fragilizada pelas novas tendências de uma sociedade em mudança e propícia a crises de valores.
Tanto quanto me foi possível apurar, quiseram disputas pelo poder separar as irmãs que se envolveram num aparatoso conflito que humilhou a humanidade. Nesta trama, destacaram-se ainda aqueles que assistindo ao conflito, eram também fonte de tumulto e não tão pouco culpados: por todo o lado se ouvia o púlpito das massas que acusavam a Democracia de se aproveitar da Justiça pelo facto desta última ser cega. Ora, se a Democracia se encontrava já enfurecida, o gáudio das massas perplexas pelo acontecimento e decepadas da sua capacidade racional, extasiava-a ainda mais, pelo que se debatia violentamente contra a Justiça, sacudindo-a e deixando-a prostrada no chão. Esta última, francamente fragilizada respondia:
- Demo kratos depravado e ultrajante! Quiseste tu aproveitar-te do teu aparente estatuto solidário e justo – em muito favorecido pela minha pessoa; para agora te tornares autónomo e agir colateralmente? Não sabes tu que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”? Ou será que a Democracia é isenta a este princípio tão amplamente defendido?
A Democracia não respondia verbalmente à Justiça, aliás, nem tão pouco procurava inteirar-se do seu ponto de vista! A cada argumento proferido pela Justiça, a Democracia sacudia-a ainda mais, repelindo-a com gestos de simultânea violência e precaução – porquanto o cuidado não devia ser pouco… A Democracia vestia um traje verde, um pouco desvanecido pelo tempo e já de tons melancólicos. Apesar do avarento e erróneo comportamento da Democracia, todos os seus gestos exasperavam uma delicadeza sublime: a Burocracia era o satélite natural da Democracia. Existia uma força de atracção entre os dois corpos, que como sabem, é directamente proporcional às suas massas e inversamente proporcional à distância que os separa (parece que a Democracia morre de amores pela Burocracia, por isso mesmo, a força de atracção gravítica entre os corpos é tão intensa). Deste modo, com a Burocracia tão perto, a Democracia agia de modo meticuloso, não fosse a Injustiça avantajar-se na labuta e ripostar com todas as suas forças.
Confidenciou-me o meu amigo que a porfia só terminou quando a Injustiça, a mais velha e manhosa das irmãs, assomou ao campo de batalha vinda numa moto GT de 125 cavalos. Injustiça, ao contrário de Justiça, era aparatosa e opulenta, de um modo geral, muito bem adaptada aos novos tempos. Não obstante, se por um lado a Justiça é cega, por outro, a Injustiça aufere de uma visão exímia nem tão pouco corrompida pelo peso da idade.
Provavelmente interrogar-se-ão a razão pela qual a Injustiça, desequilibrada, farsante e maldosa, socorreu as irmãs… Bem, não foi bem auxiliar as irmãs, mas antes a irmã Justiça, com quem havia crescido e passado a sua infância, apesar das notórias crispações ideológicas entre as duas! Era, de facto, demovedor ver a Justiça naquele estado lastimável: as roupas rasgadas pelas investidas violentas da Democracia, as vendas que escondiam aquele olhar longinquamente cego tinham desaparecido e até mesmo a balança (objecto das decisões justas e equilibradas) perdera o rumo e contrabalançava-se infinitamente, tilintando quando batia no chão manchado de vergonha.
Se por um lado a Injustiça invadiu-se de sentimentos de compaixão pela Justiça, por outro, viu-se envolta numa enchente de fúria perante a Democracia. Sim, essa tirana que durante anos a condenara ocupava agora o seu estrato social. Não fossem os sentimentos de repudia desenvolvidos por ambas e poderiam actualmente ser grandes amigas…
Apesar da diminuta e insignificante diferença de idades entre a Injustiça e a Justiça, durante milénios, a velha manhosa acabou por prevalecer sob a sua irmã mais nova, sendo a guia condutora de toda a humanidade. Só com a emancipação solista da Democracia, a Injustiça começou a perder terreno (e uma irmã): a Democracia havia convidado a Justiça para exercício de funções! Num Estado verdadeiramente democrático é preciso que haja quem coordene o que é justo ou não, assegurando que direitos e deveres são cumpridos por todos, ou então os delatores da lei têm punição certa. Por todas estas razões, a Democracia foi durante milénios subordinada à Justiça (cordata, mas cega e ingénua). Agora, como Democracia detém a hegemonia do poder, repele a Justiça e segue a guia comportamental da Injustiça numa tentativa de auferir maior proveito próprio.
Mais não sei. A Injustiça, com o seu aspecto vistoso e jovem, empoleirada numa moto GT 125, aufere de um aspecto convidativo para os mais jovens. É assim mesmo, a Injustiça é verdadeiramente injusta e disfarça-se como pode, numa tentativa de atrair para o seu mundo o maior número de indivíduos possível. Neste caso, desta monta feita, a Injustiça não vagueia na sua moto à procura de Cristãos Novos, mas transporta antes a Justiça para um local mais seguro. Fraternidades à parte, quando as entidades legais não funcionam ou quando nada corre conforme o planeado, há sempre quem se socorra da Injustiça…


Mário

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